Somos capazes de nos orgulhar de coisas em nós que são essencialmente vergonhosas.
Estou lendo a autobiografia de Andre Agassi. Para aqueles que não acompanham as competições de tênis, talvez tal nome não diga nada. Porém, os fãs desse esporte sabem que Agassi é considerado um dos cinco melhores tenistas da história. Um espetacular jogador, que, curiosamente, entrou nas quadras não por opção, mas pela intensa obsessão do seu pai. Quando o filho tinha cinco anos, ele já o forçava a bater na bolinha amarela com uma raquete. “Você tem que rebater diariamente 2.500 bolas, para sonhar ser um grande tenista”, dizia repetidamente.
No penúltimo jogo da sua carreira, prestes a abandonar as quadras, Agassi descreveu uma interessante jornada por suas memórias. Mentalmente, viu dentro de si a criança que um dia foi, rebatendo bolinhas como louco, para alimentar um sonho que não era seu. Lembrou-se dos altos e baixos, das dores e alegrias, de tudo quanto fizera até chegar àquele condição – um homem rico, famoso e consagrado. A criança do passado fora substituída por um superastro, mas ele não pôde deixar de fazer a si mesmo um inquietante questionamento: será que a pessoa que havia se tornado era alguém de quem o menino que ainda trazia consigo teria orgulho? Por outras palavras: ele realmente poderia se orgulhar da pessoa que havia se tornado?
Esta não é uma pergunta que, de tempos em tempos, todos nós deveríamos nos fazer? Nós, que somos engolidos pelo cotidiano, pressionados pelos compromissos profissionais e financeiros, sobrecarregados pelas múltiplas demandas pessoais e familiares; nós, que corremos atrás do vento, buscando resultados e reconhecimento; que lutamos para manter um padrão de vida – o que muitas vezes acarreta o sacrifício de sua qualidade – e que acordamos cedo e dormimos tarde, na tentativa de aliviar o cansaço para logo depois começar tudo novamente... O tempo vai passando e, à medida que a vida escorre, eu e você vamo-nos transformando em alguém, vamos sendo moldados nas formas da nossa existência. É uma metamorfose inexorável, da qual ninguém escapa.
Experiências boas e ruins vão compondo nossa jornada. Elas podem nos transformar em um indivíduo a ser detestado por nós mesmos ou pelos outros ou em alguém que nada mais é que uma versão madura e bonita da criança que um dia fomos. Acontece que podemos nos tornar uma pessoa deformada e detestável e, ainda assim, gostarmos desta versão de nós mesmos. Somos capazes de nos orgulhar de coisas em nós que são essencialmente vergonhosas. Por isso mesmo, uma segunda reflexão, ainda mais desafiadora, nos é colocada. Será que estamos nos transformando na pessoa que Deus deseja que sejamos?
Verdade que a pessoa em quem estamos nos tornando não é uma criação somente nossa. Ela é resultado das múltiplas influências que incidem cotidianamente sobre nós. Ao longo dessa jornada chamada vida, vamos interagindo com pessoas, com ambientes, com experiências – e é o somatório disso tudo que nos transforma em quem somos. Por saber disso, Deus coloca santas influências em nossa vida, para que, a partir delas, cada um de nós possa ser moldado às condições que ele gostaria que tivéssemos. Quanto mais convivemos com elas, tanto mais próximos estamos do desejo do Senhor. Se descobrirmos quais são essas influências divinas que atuam sobre nós, poderemos, conscientemente, conviver mais de perto com elas, a fim de que sejamos transformados em alguém de quem não somente nós mesmos gostemos, mas, sobretudo, que agrade ao Pai de amor.
Em sua infinita sabedoria, Deus encontrou uma maneira emblemática de nos ensinar isso. Um dia, no passado, ele mandou um de seus profetas entre o povo de Israel, Jeremias, visitar o atelier de um ceramista. Lá chegando, ele viu as hábeis mãos do oleiro transformar lama e barro em lindos vasos. Aquela matéria prima disforme e de aspecto desagradável, nada mais que terra misturada à água, virava verdadeiras obras de arte. Deus queria que o profeta e todos nós víssemos que esta era a história dele conosco. Sim, não importa que sejamos apenas lama, mas sim, aquilo em que podemos nos tornar – vasos de barro, feitos para a glória do Senhor.
Andre Agassi teve a coragem impressionante de admitir que sempre detestou o esporte ao qual se dedicou durante trinta anos. A razão disso? Ele simplesmente descobriu que viveu para ser alguém que era simples projeto de um pai tirano. Ainda bem que tanto ele como nós podemos buscar coisa diferente: ser aquela pessoa que o Pai deseja que cada um de nós seja. A pergunta crucial, que cada um de nós deve responder a si mesmo, é: Que tipo de pessoa estou me tornando?
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Eduardo Rosa - Colunista da revista Cristianismo Hoje
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