O filósofo francês Paul Ricoeur
chamou-os de mestres da suspeita. Eles tinham em comum uma análise muito
crítica da religião; viam Deus como uma necessidade criada por nós, e não como
um ser pré-existente, a partir do qual tudo se fez. Cada um ao seu modo, eles
previam a emancipação da raça humana a tal ponto que cada indivíduo
tornar-se-ia autônomo! Marx via na revolução social uma promotora de radical
igualdade. Seria a libertação desta idéia de Deus, gestada justamente por um
proletariado socialmente carente de algo capaz de lhes dar aquilo o que a
realidade lhes negava. Já Freud entendia a maturidade psíquica como o
elemento-chave para a superação desta infantil necessidade de um Pai divino.
Por sua vez, Nietzsche enfatizava o fato de assumirmos plenamente a nossa
humanidade, tomando as rédeas de nosso próprio destino. Assim, haveria
super-homens, livres desta primitiva necessidade do divino.
Obviamente, não concordo com as
suspeitas desses mestres. Porém, algumas vezes, sou tentando a encontrar uma
dose de razão em suas afirmações. Isto porque já vi pobres piedosos perdendo
sua devoção a Deus na mesma medida que subiam de classe social; vi também
desempregados numa busca frenética pelo socorro do Senhor, mas que, uma vez
colocados no mercado, tornaram-se pessoas tão ocupadas que suas agendas não têm
mais espaço para alimentar a busca de outrora; e presenciei a experiência de
gente que, quando emocionalmente carentes, mergulharam numa forte dedicação
espiritual – porém, depois de se “resolverem” afetivamente, afastaram-se de
Deus. Isso, sem falar naqueles decepcionados com a “incapacidade” divina de
resolver suas complicadas vidas, que melhoraram quando eles mesmos resolveram
assumir o controle.
Infelizmente, os mestres estão
certos quando afirmaram que por trás da nossa relação com Deus reside, sim, uma
necessidade de criá-lo à nossa imagem e semelhança. A honestidade comigo mesmo
me impõe o dever de reconhecer uma tendência de tratar a Deus como uma
necessidade. A consequência natural disso é transformá-lo em um mero provedor
das nossas demandas – como o entregador de pizza que, uma vez atendido nosso
pedido, pode ser dispensado. Acontece que, na intimidade relacional de Jesus
com o Pai, aprendemos definitivamente que Deus deve ser o sujeito do nosso
desejo, e não o objeto de nossa necessidade. Em Jesus, Deus que se revela no
Antigo Testamento como Javé, o intocável e inatingível; mais tarde, é renomeado
e chamado de Abba. De Todo-poderoso a paizinho querido; de Senhor inalcançável
a cúmplice mais presente na nossa existência.
O desejo, como sabemos, está para
além da mera necessidade. No desejo, há o prazer do encontro com o desejado.
Eis a razão pela qual Deus se apresenta a nós como aquele que nos quer seduzir
o coração, e não como alguém a satisfazer nossas necessidades. Quando se fez humano em Jesus de Nazaré, o
Criador quis se aproximar de nós, pois sabia que o primeiro passo da conquista
é a aproximação do ser amado. Ele quer quebrar nossas resistências, nossa natural
alienação, e anseia por ver nosso coração tomado por sua doçura. Quando ouvimos
e atendemos seu suave chamado, ele entra para cear conosco. Olha para dentro de
nós e vê o que não somos capazes de enxergar em nós mesmos: nosso caos
interior, as manchas profundas do pecado em nossa alma. E, apesar disso, não
nos rejeita! Quando então, rendidos por seu amor, abandonamos as fronteiras do
nosso egoísmo e nos entregamos em seus braços, nasce desse encontro uma relação
de amor e amizade alicerçada no desejo mútuo de estar juntos.
Se continuarmos pensando a nossa
relação com Deus em termos de necessidade, e não de desejo, terminaremos por
ter que nos render ao fúnebre diagnóstico dos mestres da suspeita. Mas, quando
nós o desejamos mesmo que nossas necessidades não sejam atendidas, então se
cumpre aquilo que tão bem descreveu a teóloga cristã Maria Clara Bingmemer: “O
que é certo é que homens e mulheres de hoje, como os de todo tempo, continuam a
experimentar o drama de sentir-se limitados e frágeis e, no entanto, feitos
para a união com aquele que não tem limites.
E, no fundo mais profundo de si próprios, se percebem habitados pelo
desejo ardente e incontrolável de entrar
em comunhão com esta incompreensível realidade que se chama sagrado – a qual,
devido ao fato de ser incompreensível, não é sentida como menos real (...) O amor passa, então, a governar suas vidas e
a transformá-las segundo a inexorabilidade e a radicalidade de sua vontade”.
Escrito por: Eduardo Rosa
Extraído de:
www.cristianismohoje.com.br
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