Passei toda minha infância no
campo, criando animais como cabritos, aves e porcos. Lembro-me de uma leitoa
que gostava de furar a cerca do chiqueiro e invadir as plantações dos nossos
vizinhos com seus filhotes. Um dia, um agricultor ficou enfurecido ao ver sua
plantação destruída e atacou o animal e seus porquinhos com uma foice. Um dos
golpes atingiu em cheio a perna traseira de um deles, justamente o malhado que
meu pai tinha escolhido para ser meu presente. Quando vi o bichinho ensanguentado com a pata mutilada, gritei desesperada. Mas meu pai era um
camponês muito habilidoso no trato dos animais e conseguiu salvar o porquinho –
ele ficou sem parte da uma pata, mas conseguia caminhar com as outras três e
fazia tudo que os outros faziam.
Este episódio singelo ilustra bem
a forma como lidamos com aquilo que não recebemos ou que nos foi tirado, e
também quando dizemos não para algo que desejamos, mas que contraria nossas
crenças e valores. E um dos sinais de maturidade – tanto emocional quanto
espiritual – de uma pessoa é sua capacidade de superação diante de alguma perda
ou de alguma coisa que lhe falta. A incapacidade de ficar sem algo desejável
começou no Éden. Lá, Deus deu ao homem e à mulher o usufruto de todo o jardim,
com exceção do fruto de uma árvore. O primeiro casal tinha toda a Criação à
disposição, mas pôs o foco de seu desejo justamente na árvore proibida. E por
isso foi tão fácil para a serpente convencer Eva a transgredir a ordem divina.
Desejos e carências podem ocorrer
em diversas situações ou momentos da vida. Atualmente, acredita-se que há
necessidades não supridas desde o ventre materno. Assim, sentimentos doloridos
ou prazerosos da mãe poderiam afetar o bebê, mesmo que ele ainda seja um feto.
Após o nascimento, a criança também está sujeita a uma enorme gama de carências
– alguns não serão amados suficientemente; outros não serão aceitos. E desta
forma, muitos chegarão à vida adulta com lacunas impossíveis de serem
reparadas, simplesmente porque não há como voltar na história. É como a perna
aleijada do porquinho: ela existia e até podia ser utilizada, mas sempre seria
deficiente.
No decorrer da vida, estamos
sujeitos a perdas, acidentes e reviravoltas que podem nos mutilar material,
física ou emocionalmente. Às vezes somos lesados nos relacionamentos – é um
cônjuge que escolhe alguém mais atraente e mais jovem; é um filho que passa
meses e meses sem dar notícias; é uma traição na amizade em que tanta confiança
se tinha; e é a tragédia, como a morte prematura que nos arranca uma pessoa querida
antes da hora. A má notícia é que muitos, diante do horror da dor e da falta,
preferem se desconectar da realidade. Desta forma, nunca experimentarão a
integração destas vivências em suas vidas. Lembro-me de um jovem que disse: “Eu
sofria muito por não me sentir amado pelo meu pai; então, me anestesiei,
excluindo algo de mim junto com essa dor . Hoje, quero acessar partes que são
minhas e não consigo.” Felizmente, este jovem buscou ajuda e pôde integrar em
si mesmo sua própria história. Ele entendeu que, mesmo não tendo sido amado e
compreendido pelo pai, poderia, ao longo da vida, amar e aceitar o amor de
outros em toda sua plenitude.
Já a boa nova é que as pessoas
que têm coragem de assumir suas carências e mazelas passarão pelo desconforto
dos próprios aleijões, mas poderão redefinir a própria vida de forma amorosa e
completa. Como cristã, acredito que o Calvário é um bom lugar para irmos com
tudo que nos falta. Ao nos aproximarmos do Salvador sob o peso de nossas
fragilidades, contemplaremos um Cristo que foi injustiçado e defraudado, de
quem quase tudo foi tirado. Só lhe restou, naquele momento, forças para bradar
em alto e bom som todo seu desamparo. No Calvário, encontramos Cristo
sacrificado, humano como nós, e que pode caminhar conosco aliviando a dor
daquilo que nos falta. E pela sua ressurreição nos dá satisfação plena.
Aprender a caminhar sem negar e
conviver com as próprias carências é necessário para que sejamos mais amorosos
e compassivos com aqueles que sofrem por não receberem o essencial para a vida.
Quem consegue conviver com alguma necessidade não suprida terá mais recursos
para desfrutar do que lhe está disponível e administrar os desejos egoístas,
como a busca desenfreada por prazer, poder e satisfação. Desta forma, sem negar
os desejos, é possível destroná-los, subsistir numa eventual falta e ainda
escolher a ação que menos danos trará às pessoas que estão à volta.
A proposta do Cristianismo é que
não neguemos os desejos, mas que os tenhamos sob controle, mesmo que isso
signifique a carência de algo tido como importante. Quando Jesus alertou seus
seguidores acerca da necessidade de dominar o pecado, ele o faz usando
como simbologia o corpo – segundo o
Mestre, é melhor entrar no Reino dos Céus sem um olho ou uma perna do que ficar
inteiro e se perder.
Escrito por: Esther Carrenho
Extraído de: www.cristianismohoje.com.br
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