Um destes heróis acabou de partir para o Senhor. Se chamava Alberto
Graham. Não era bonito nem interessante. Falava esquisito em inglês e pior
ainda em português sua terceira ou quarta língua. Vestia umas roupas
espalhafatosas e deselegantes, e tinha uma maneira peculiar de andar balançando
para os lados como um marinheiro.
Quando jovem recebeu um chamado de Deus para trabalhar com tribos
indígenas. Se inscreveu com a esposa no Instituto Lingüístico de Verão. A
missão Wycliffe treinava seus possíveis missionários no ILV, mas só aceitava
aqueles que tivessem notas acima de 95%. Alberto era um cabeça torta conforme
lhe explicaram os índios mais tarde. Ele não conseguia aprender. Foi-se um
verão de estudos, foi-se o outro. No meio tempo trabalhava duro quebrando
asfalto com britadeira. Não é a toa que a cabeça ficou torta. Fez o curso três
vezes antes de passar.
Finalmente passou e foi trabalhar entre os Sateré-Mawé no baixo
Amazonas. Já contei esta história antes, talvez tenha esquecido algum detalhe,
o fato é que o Alberto conseguiu comunicar Jesus aos Sateré de um jeito que
Jesus não se tornou nem estrangeiro nem esquisito e irrelevante. Jesus ficou
próximo da cultura e da vida diária da tribo, e Alberto foi tomado como um
profeta.
Profeta ele era mesmo e nunca se acomodou ao lugar comum. Quando eu o
conheci já velho, ele era um crente diferente. Fazia amigos entre as pessoas de
rua, não freqüentava igreja evangélica, ia numa sinagoga em Belém, diz ele que
era pra fazer amigo, distribuía dinheiro pelas ruas a desconhecidos. Quando
falava dos índios chorava como criança.
Alberto era livre. Conhecia o amor de Jesus que não se limita à
religião. Mas esta liberdade ao invés de torná-lo um libertino o tornou um
escravo de Cristo. Já aos 70 anos terminou o novo testamento Sateré (talvez uma
das mais demoradas traduções do Brasil), e foi trabalhar em outra tribo, depois
em outra. Alberto e Dona Sue sua esposa nunca pensaram que já tinham feito o
suficiente. Eram simplesmente servos trilhando o caminho da obediência.
Há alguns dias atrás eu soube que o Alberto partiu. Me fez pensar na
herança que deixou para todos os que o conheceram e no que talvez signifique
para nós o fim de uma era. A nossa formação evangélica hoje nos educa para
gozarmos a vida em Cristo, não para perder a vida com Ele. Muito jovens que
acompanhei conseguem ir até a entrega, mas esperam nas emoções que sentem a
força pra continuar. E as emoções vêem controversas, uma hora te estimulando a
ir pra frente, na maioria das vezes te chamando pra trás.
Ouvi outro dia um hino adaptado por uma banda de rock cristã, era um
daqueles hinos antigos que falam do céu. O céu é um lugar feliz onde está Deus.
Muita gente se liga nas tais das ruas de ouro. Eu tenho ojeriza de pensar numa
rua de ouro e muros de pedras preciosas. A metáfora é um tanto absurda que
certamente não se refere a nada que conhecemos aqui na terra. Imagine a
dificuldade de se descrever algo que nunca se viu antes. Ouro transparente foi
o mais próximo que João conseguiu chegar. Mais importante que o esplendor pra
mim seria o fato de que a cidade é pura luz, sem que haja nenhuma iluminação a
não ser a luz do Cordeiro. Do Cordeiro não do Leão. Não há cantos escuros nela,
não há esquecidos. A cidade também não fecha suas portas, nela não há segredos,
ou exclusão e não há términos.
O conjunto jovem se deteve por vários minutos no refrão que enfatizava
meu desejo pela cidade celestial. Não consegui cantar. O Alberto tinha morrido.
Não quero a cidade pra mim. Não a desejo para me aliviar de minhas mazelas. A
quero para os outros. Quanto tempo você cantaria se o hino dissesse que o céu é
para os outros? Quero o céu para os excluídos, o quero para os que sofrem , o quero
para os sem esperança. E por causa disto estou disposta a viver aqui o inferno.
O inferno verde, o inferno de mosquitos o inferno de desconforto de décadas de
dedicação aos mais pobres dentre os pobres. Foi-se Alberto para a cidade depois
de 50 anos de inferno verde. Salve, herói da fé que entendeu que o meu inferno
é céu dos outros.
Escrito por: Bráulia Ribeiro.
Extraído de: www.ultimato.com.br
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